Há uns anos, olhando pela janela de casa, ainda morando no Rio de Janeiro, vi uma mulher de verde – muito bonita – entrando no mercado enquanto, no mesmo instante, um carro batia no poste. Aos meus olhos, a despeito de todas as infinitas ações que aconteciam ali, ao mesmo tempo, envolvendo incontáveis circunstâncias ao estilo de Onde está Wally?, uma pergunta saiu de dentro de mim.
Toda a vez que uma bela mulher entra no mercado, um carro bate no poste?
Na mesma velocidade que veio a pergunta, a resposta apareceu: não.
Os anos foram passando, anamneses segui fazendo, e a mulher de verde e o poste sempre estavam por lá.
“Doutor, eu bati com a barriga em um bujão de gás e fiquei amarelo.”
“Sentei no banco da praça e a dor nas minhas juntas começaram.”
“Minha mãe parou de mexer o lado direito do corpo na hora em que tomou o suco da feira.”
A resposta sempre aparecia: não. A mulher não tem nada a ver com o poste.
Até que um dia lembrei do motorista. E se ele estivesse olhando para a bela mulher de verde quando, distraído, bateu no poste? A inserção do motorista na narrativa nos mostra que existem duas relações entre a mulher de verde e o poste. Uma evidente, que é a relação temporal. De fato o carro bateu no poste no momento que a mulher de verde entrou no mercado. E outra possível, que é a relação causal. Esta última tão buscada por nós que sempre nos apressamos para definir causa e consequência.
Vejo isso todos os dias nos estudantes de Medicina que, entusiasmados em dar o diagnóstico, prendem-se aos elementos narrados obcecados por dizer o que causou o que.
O ponto é que, quando trazemos à memória um fato, costumamos ocultar uma série de outros eventos que ocorreram na vida concreta assim que uma situação de causa e efeito é estabelecida e, na mesma proporção, desvalorizamos qualquer outra relação – ainda que temporal – quando tal causa nos parece impossível.
Essa semana atendi um rapaz que se machucou no banco da praça, teve uma infecção de pele no local e, em seguida, relatou o surgimento de dores articulares, provavelmente reativas ao quadro inflamatório. Melhorou rapidamente dos sintomas com o tratamento da infecção.
Toda a vez que uma bela mulher entra no mercado, um carro bate no poste? Não. Mas em algum caso real, diante de nós, após investigar pacientemente todo o cenário, talvez a resposta seja sim.
Perfeito! Adorei como algo habitual não passou despercebido pelos seus olhos, e virou um lindo texto, com uma excelente reflexão.
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Obrigado, Camila
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Já vi outras pessoas apontando esse erro cognitivo de associação e causalidade, mas no seu texto isso é feito de forma bem mais inteligente, mt bom
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valeu!
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