O amor de Engrácia por sua filha Clara não foi capaz de protegê-la das investidas indecorosas de Cassi Jones, personagem do livro Clara dos Anjos, de Lima Barreto.
A menina Clara, negra e pobre, cuidada com muito zelo por sua mãe, foi assediada durante meses por Cassi Jones, violeiro boêmio com fama de desvirginar as mocinhas da periferia e arruinar, então, o futuro delas.
Com múltiplas passagens pela polícia, sem emprego e colocado para fora de casa pelo pai, Cassi vivia nas rinhas de galo e farras da noite, onde aprendia e cultivava os hábitos e trejeitos do verdadeiro malandro carioca. Com tal habilidade, aproximou-se docilmente e, com promessas de amor verdadeiro, conseguiu ganhar espaço no coração da moça. Durante o desenrolar do romance, o cinismo cirúrgico de Cassi Jones criou na imaginação de Clara uma possibilidade de futuro que correspondia com as sensações deslumbradas da adolescente ainda que a mãe a alertasse do contrário. Clara, na solidão do seu quarto, suspirava imaginando que Cassi estivesse apaixonado e que os dois, como casal, viveriam felizes para sempre, diferentemente do que já havia acontecido, dezenas de vezes, com outras moças na mesma situação. Ela não deu relevância às motivações sórdidas de Cassi e, muito menos, ao fato de que uma família de brancos jamais aceitaria a oficialização da miscigenação. Como disse a própria Dona Salustiana, mãe de Cassi:
“Casado com gente dessa laia… Qual!… Que diria meu avô, Lord Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina – que diria ele, se visse tal vergonha?”
Engrácia sabia de tudo mas Clara preferiu acreditar em seus sentimentos, em sua inocência e em sua inexperiência, já que a mãe foi incapaz de iluminar a sua consciência. Clara desconhecia profundamente a realidade. Não foi capaz, através de seu imaginário pueril, de conceber possibilidades reais para sua vida adulta e muito menos de se precaver dos perigos concretos a que era exposta. E Engrácia foi incapaz de educar.
Segundo o autor:
“Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios, era incapaz do que é verdadeiramente educar. Ela não sabia apontar, comentar exemplos e fatos, que iluminassem a consciência da filha e reforçassem-lhe o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria.”
Neste contexto, Cassi dormiu com a moça e engravidou-a. Dona Salustiana, após descobrir que seu filho novamente havia incorrido em tal crime – crime! Na época engravidar uma moça solteira e não casar com a mesma era crime – disse:
“Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas… É sempre a mesma cantiga… Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com a faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas…”
Como sempre, a realidade se impôs e, no final, Clara dos Anjos ainda foi culpada pela mãe do criminoso e aprendeu, na pele, que diante de uma relação sedutor-seduzido a relativização moral dos canalhas sempre acusa o lado que fica com o dano.
Lima Barreto resume muito bem a situação dela:
“A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela deveria ter aprendido da boca de seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isso ao vivo, com exemplos, claramente… O que era preciso, tanto a ela quanto às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, para se defender de Cassi e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam…”
O livro foi concluído em 1922 e publicado em 1948, mas em 2021 as Claras ainda seguem por ai, brancas e pretas, meninos e meninas, expostas a todos os tipos de sedução. O assédio chega por wi-fi enquanto as Engrácias estão amando, mimando e pagando as mensalidades da faculdade. Os Cassis Jones estão no Instagram e já não são mais homens desocupados, mas sim homens e mulheres que banalizam a própria intimidade, de todas as maneiras possíveis. As Donas Salustianas estão nas escolas, ensinando para as crianças que a culpa é de quem, de fato, poderia defendê-las.
Mas cuidado, a realidade se impõe. E você já está vivendo isso, ou vendo em pessoas próximas. Remédios, tristeza, um vazio no peito.
O livro termina com Clara dos Anjos dizendo assim, ao final de sua tragédia, para Engrácia:
“Mamãe! Mamãe! Nós não somos nada nesta vida.”
É preciso, com firmeza, educar o caráter.