É impróprio gritar de dor

É impróprio gritar de dor é uma conclusão retirada do livro Teoria dos Sentimentos Morais, de Adam Smith. Smith chega a esta conclusão após analisar a conveniência – ou inconveniência – no que diz respeito à expressão de uma paixão.

Algumas paixões, como as que nascem de determinadas condições do corpo, jamais serão proporcionais à intensidade do sentimento despertado no espectador. O autor usa a dor como exemplo e por isso diz que é impróprio gritar de dor.

Na semana passada, uma aluna de Medicina me contou que a professora, ao vê-la incomodada com o sofrimento de um paciente, disse: “Você se envolve demais. Cuidado. Vai sofrer muito com isso”.

Obviamente que eu já havia escutado este tipo de conselhos algumas vezes mas, confesso, que nunca me cheiraram muito bem. Sempre achei essa solução – não se envolver – meio Hakuna Matata. E Hakuna Matata não é o meu estilo de ser, mesmo porque, antes mesmo de ver O Rei Leão, li o livro do Peter Pan, e algo no Capitão Gancho e em seu algoz – o crocodilo: aquele que já arrancou-lhe um braço e ainda o persegue ao som do tic-tac, lembrando que o tempo é implacável – me soava mais concreto do que o blá-blá-blá do Peter Pan que preferia viver na Terra do Nunca fugindo eternamente dos deveres da vida.

Mas, afinal, por que um médico não deveria se envolver com seu paciente? Por que fugir da dor? Não seria o resultado deste envolvimento a base para o desenvolvimento da habilidade mais requisitada, atualmente, nas aulas de Humanidades Médicas: a tal da empatia?

Já presenciei aulas na faculdade onde professores e alunos eram capazes de chorar, assistindo a um vídeo dos Médicos sem Fronteiras, na hora que o médico colocava o estetoscópio no peito cadavérico do menino africano. E, dias depois, no Posto de Saúde, preferiam não se envolver com os seus pacientes para justamente não… chorar! Também vejo as metodologias ativas encantando o Ministério da Educação e Cultura com atores que interpretam a dor humana de forma hollywoodiana e, de forma magnífica – em teoria – conseguem preparar o egresso para os cenários do Sistema Único de Saúde, mas, diante de um sujeito real, preferem… não se envolver.

Então qual seria a posição imaginária que deveríamos tomar diante de um paciente real em um momento de dor? Transcrevo abaixo um trecho do livro de Smith que comentarei em seguida.

Ainda que o fato de prestarmos atenção à situação de outra pessoa e nos imaginarmos nas suas circunstâncias naturalmente suscite em nosso espírito uma emoção de espécie semelhante à que o outro sente, essa emoção de simpatia, contudo, existe numa proporção inferior à que é sentida pela pessoa diretamente envolvida na ação. Por isso, a fim de obter o prazer da simpatia mútua, a natureza ensina o espectador a se esforçar, tanto quanto possível, para elevar sua emoção até o nível que o objeto realmente produziria; e, de outro lado, também ensina à pessoa cuja paixão foi provocado por esse objeto, a reduzi-la, tanto quanto possível, até o nível da emoção do espectador.

Sobre esses dois diferentes esforços fundam-se dois diferentes conjuntos de virtudes. Sobre o esforço do espectador de experimentar a situação da pessoa diretamente envolvida na ação e elevar a sua emoção de simpatia ao nível das emoções do ator, fundam-se as virtudes gentis e amáveis, as virtudes da condescendência franca e da humanidade indulgente. Sobre o esforço da pessoa diretamente envolvida na ação de rebaixar suas próprias emoções de modo a corresponderem o mais possível às do espectador, fundam-se as grandes virtudes graves e respeitáveis da abnegação, do autocontrole, daquele comando das paixões que sujeita todos os movimentos de nossa natureza ao que exige nossa própria dignidade e honra, e a conveniência de nossa própria conduta.

Bem, quando uma pessoa fragilizada pela dor – física, psíquica ou espiritual – senta na frente de um médico, para uma entrevista clínica, este médico precisa fazer uma escolha: esforçar-se ou não esforçar-se. Não um esforço cientificista na busca pela informação do último artigo, mas um esforço reflexivo no campo das virtudes humanas. Um médico que recebe a dor do outro precisa elevar o nível das suas emoções, caridosamente, para que chegue perto de uma sensação real semelhante àquela que, de bandeja, o paciente lhe oferece. O paciente lhe apresenta uma possibilidade – dentre infinitas – de uma vida humana verdadeira. E é experimentando uma dessas possibilidades, única e irreprodutível, que o médico pode refletir sobre as inúmeras perspectivas futuras para a sua própria vida e ser verdadeiramente humano com aquela diante de si. A dor do outro um dia pode ser a dele ainda que não seja agora.

Mas vai doer? Claro que dói!

Dói e por isso muitos professores aconselham que o aluno não se envolva. Que desde cedo entre de cabeça na cultura do analgésico e negue a dor, a culpa e o medo, como se nunca fossem aparecer na sua narrativa. Mas segundo Smith, é justamente diante da nossa própria dor que, sem gritar, podemos lidar com o outro conjunto de virtudes bem representado pela abnegação. O médico, ao invés de fugir para não sofrer, pode sofrer em silêncio sabendo que a consequência do exercício de lidar com a expressão do seu sofrimento, encarando-o de frente, pode levar ao autocontrole e a conveniência da sua própria conduta. E não é conveniente ser um médico humano, um médico de verdade? É! E onde não há dor, não há Humanidades Médicas.

Mas e o paciente? Pode gritar de dor? Claro que pode! A Medicina é uma profissão de serviço e quem está ali para servir – e não para julgar – é o médico. E todo médico, diante do grito da dor do outro, tem o dever moral de se esforçar para senti-la.

P.S.1: Doutor, o recado do Adam Smith é para ti e não para o teu paciente. Para de resmungar e reclamar, e mata no peito essa dor. Sem gritar!

P.S.2: Meu bem, diga à Professora Sininho que você não vai para a Terra do Nunca.