Empatia de sofá: o triste fim de quem vive a poesia sem a prosa

Um dos vídeos* mais marcantes dos Médicos sem Fronteiras (MSF), disponível no Youtube, com a música Everybody Hurts de trilha sonora, conjuga cenas reais de pessoas em profunda miséria com as de profissionais de saúde lhes oferecendo atendimento. Um vídeo poético que gera uma emoção intensa, conduzindo quase todos os que o assistem a algum tipo de reflexão.

A linguagem poética é bastante útil quando nos desperta da letargia moral e da acomodação cotidiana através de exemplos concretos, levando alguns dos receptores a cogitar tal possibilidade de vida como uma alternativa futura a ser escolhida, ampliando assim os horizontes para as próprias ambições. Tal linguagem, quando bem utilizada, é uma ferramenta a ser disponibilizada – esporadicamente – para reforçar as inclinações já presentes naquele que já traz de casa, na bagagem, algum esboço de educação moral e de virtudes. E dentre as virtudes, neste caso, a magnanimidade – entendendo esta como a força que nos move a sair de nós mesmos para seguir aqueles que direcionam as suas bússolas íntimas para algo valioso, maior e em benefício de todos, ainda que o caminho seja duro – é um dos pré-requisitos mais importantes para que o efeito poético atinja a esfera da ação.

A questão é que a poesia pode, para os que não foram educados nas virtudes, apenas alimentar um movimento egocêntrico muito bem descrito por Jesús Urteaga no livro O Valor Divino do Humano.

“Eras um homem de vida pacífica e tranquila. Introvertido em teus pensamentos, vivias alheado da preocupação pelos outros homens. Tuas ânsias, teus ideais, moviam-se num mundo pequeno e ridículo que, no entanto, para ti era grandioso pelo muito que abarcavam os tentáculos da tua imaginação. Logo que abandonavas os homens, recomeçavas a conversar contigo mesmo. Um monólogo constante, uma fantástica novela em que o orgulho, a vaidade e as paixões… te haviam proclamado, entre os aplausos das sombras, personagem central da terra. Eras a figura, o protagonista, o homem… A leitura de biografias célebres acrescentava às tuas proezas – interiores – o último êxito, a última aventura dos biografados. O mundo não contava – ainda – contigo, mas havia de chegar o momento em que necessariamente pediria a tua colaboração. Far-te-ias rogar e, por fim, com gesto lânguido, ver-te-ias obrigado a aceitar aquele honroso cargo, o título honorífico, a direção das massas operárias, um pastor entre os grandes homens. O caminho era simples, demasiado simples. A imaginação não entendia absolutamente nada de responsabilidade, nada de trabalho duro, nada de entraves, nada de cruz.

Eras um homem de vida pacífica e tranquila. Excessivamente jovem.

E a primavera de tua vida chegou com ruídos de guerra e gritos de fome. E despertastes ao sentires sacudido o teu braço pelo braço de outro homem. Fechastes os olhos fortemente para os abrir depois e despertar daquele sonho em que vivias, e encontrastes outros olhos que pediam pão, e um rapaz de cara sarnosa e cretina estendendo a sua mão aberta…, não sabias para quê; nada compreendias. Fizestes um gesto de desprezo e nojo, e ao pretenderes escapar àquelas sombras – assim chamava tu a realidade -, um coro de gargalhadas paralisou os teus ossos. Da tua alma saiu um grito de terror e ao mesmo tempo de raiva. As vozes emudeceram por um momento, para se tornarem mais selvagens, mais penetrantes. Aos empurrões, abristes caminho por entre aquela podridão que tinha vida. Que te importava a ti a fome dos outros? Por que não haviam ocupado o tempo a sonhar como tu, em vez de vagabundear pelas ruas? Por que gritavam a ti, se nunca os tinhas conhecido?

E logo que te libertastes daquelas feras, pretendestes voltar aos teus sonhos de sempre, ao teu mundo pacífico e tranquilo.”

Chegamos então a empatia de sofá. Aquela ensinada em salas de aula – e treinada em casa, no sofá – e que causa comoção e sensação de bem estar momentâneos, falsamente pedagógicas. Que não está ancorada no treinamento profundo das virtudes, tão necessário para o amadurecimento do médico. Que satisfaz o desejo mas mata – de fome – a vontade. Que retroalimenta o fantástico mundo interior dos que não se responsabilizam nem por arrumar o próprio quarto.

Pobre do aluno que agiganta a sua imaginação quando se projeta, pacificamente, fazendo bem à humanidade num futuro imaginário mas que, na manhã seguinte, na enfermaria, sequer enxerga o paciente ali deitado como um outro ser humano.

Sem o esforço oculto da prosa diária, a poesia afunda ainda mais aquele que vive, tranquilamente, no fundo do bueiro, acreditando que o céu é apenas o teto de sua casa.

A prosa acontece nas enfermarias. É de lá que o aluno precisa esperar a primavera.

“… and everybody hurts, sometimes…”

*https://www.youtube.com/watch?v=AgdcmU7bqdA