Homens ocos

“O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas”.

A frase de Djamila Ribeiro, filósofa, feminista negra e escritora, faz parte do seu livro O que é lugar de fala? lançado em 2017.

Sem rodeios vou ocupar o meu lugar de fala: de homem branco, hétero, professor e médico, casado, com filhos e sem grandes dramas para contar, para apontar uma crise que acontece exatamente neste lugar, em algum espaço do meu passado, entretanto ainda tão presente.

Eu me dirijo exclusivamente a parte de um grupo de homens brancos, héteros, estudantes de Medicina, solteiros e com poder econômico e social. Não falo – e que fique marcado aqui! – a nenhum outro grupo. 

Andando em bandos, esses homens – supostamente homens – só andam em bando. Um bando normalmente liderado pelo mais brilhoso1.

As cantinas da faculdade e os bares ao redor viram o palco das resenhas onde a fantasia, esvaziada do vigor moral necessário para apontar o coração para algo maior, não transforma mais os moinhos em gigantes a serem combatidos por um fim nobre, mas sim as mulheres em objetos a serem consumidos como o fim último. O líder, rodeado de sanchos de araque, tem deles não a âncora para a vida real, mas – desde sempre – a veneração pelo abdome sarado e pelos seus músculos. São homens héteros encantados por outro homem hétero, nutrindo por ele uma mistura de sensações desde um estranho orgulho por fazerem parte do bando até uma tristeza profunda por não serem como ele, passando por um desejo da queda do alfa, como no mundo animal.

E na história onde os moinhos são as mulheres-objeto, desaparece o espaço singular de Dulcineia de Toboso2, a encarnação da Beleza e da Virtude, a senhora dos pensamentos do fidalgo cavaleiro, aquela que seria a mulher que jamais seria objetificada.

Há uma crise hétero escancarada e protagonizada por esses grupos. Homens de patota buscando batalhas contra as mulheres. Batalhas que acabam em uma cama onde todos saem perdendo. Homens, deslocados da realidade, imersos em pornografia, obcecados pelo espelho, encontram nos moinhos outros espelhos onde saboreiam o próprio prazer e que, seguindo nesse rumo, jamais encontrão significado para o que é verdadeiramente uma vida de dedicação a uma mulher.

Que falta faz a pança que pesa e coloca os pés no chão.

Agora adapto um trecho* do livro de Cervantes para o meu lugar de fala, imaginando – e desejando! – como seria se o verdadeiro Sancho tomasse seu lugar.

Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta mulheres, que há naquela festa. Assim que Dom Frangote os viu, disse para o escudeiro:

— A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar; porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais deliciosas mulheres, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todas a individualidade, e com cujos despojos começaremos a degustar; que esta é boa guerra, e bom serviço faço a mim mesmo quem se aproveita do corpo dessa gente que nada vale.

— Quais delícias? — disse Sancho Pança.

— Aquelas que ali vês — respondeu o amo — de roupas tão curtas que, às vezes, parecem nuas,

— Olhe bem Vossa Mercê — disse o escudeiro — que aquilo não são objetos apenas, são pessoas ainda que pareçam adolescentes sem nada na cabeça; e o que parece saboroso, são intimidades, que tocadas por você, se rebaixam ao nível de uma lata de cerveja.

— Bem se vê — respondeu Dom Frangote — que não andas corrente nisto das aventuras; são gostosas, são; e, se tens medo, tira-te daí porque sabes que não podes devorá-las, e põe-te em posição de inveja. Melhor que me idolatres enquanto eu vou entrar com elas em fera e desigual batalha.

Dizendo isto, tomou um shot de vodka, sem atender aos gritos do escudeiro, que lhe repetia serem sem dúvida pessoas, e não essas mulheres, as que ia acometer. Mas tão cego ia ele em que eram produtos, que nem ouvia as vozes de Sancho nem reconhecia, com o estar já muito perto, o que era; antes ia dizendo a brado:

— Não fujais, covardes e vis criaturas; é só um bom moço, virtuoso e descolado, o que vos investe. Eu faço Medicina e sou inteligente. Muitas me querem e muitos me amam. Veja meu tórax, como é largo. Meus braços tão grossos, não pensas em tocá-los? Pode! Meu hálito é doce, é vape com trident.

Levantou-se neste a música preferida, e começaram a dançar, em um movimento estranho mas sincronizado, todas fugiram em direção a outro bando; vendo isto Dom Frangote, disse:

— Ainda que movais tanto os braços, heis-de mo pagar.

E dizendo isto, encomendando-se de todo o coração à sua própria imagem, pedindo-lhe que, lembrando o quão belo era, dos seus músculos e poder, com o copo na mão, arremeteu a todo o galope, e se aviou contra o primeiro moinho que estava diante, e dando-lhe uma abraço forçado, a pessoa o olhou com tanta fúria, que fez sua confiança em pedaços, levando desastradamente o cavaleiro, que foi rodando miseravelmente pela festa a fora. E estourou! Como uma bolha.

Acudiu Sancho Pança a socorrê-lo, a todo o correr; e quando chegou ao amo, reconheceu que não se podia menear.

— Valha-me Deus! — exclamou Sancho. — Não lhe disse eu a Vossa Mercê que reparasse no que fazia, que não eram senão pessoas, com suas dores e angústias, perdidas sim, como nós! Mas basta!

— Cala a boca, amigo Sancho — respondeu Dom Frangote —; as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças; o que eu mais creio, e deve ser verdade, é que aquele cara3 chegou primeiro, tamanha é a inimizade e a raiva que me tem; e me trata com tanto carinho aparente.


– Mestre, nós somos homens ocos… empalhados.


Saiu, Sancho Pança, andando e viajando nos séculos, encontrando e recitando os versos de Eliot.

“Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada


Forma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;


Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam – se o fazem – não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.”

Por fim, lamento o triste fim das mocinhas que, também ocas, se envolvem com esses homens bolha de sabão e não sabem ocupar o lugar de Dulcineia porque sequer conhecem o que pode vir de Toboso.


1. Brilhoso: Homem branco, hétero, estudante de Medicina que ama a própria imagem, flutua pela vida, inchado e brilhando, buscando chamar a atenção de todos e todas mas é tão frágil quanto aparentemente forte. Basta um contratempo e estoura como uma bolha de sabão.

2. Dulcineia de Toboso: personagem fictícia da obra de Cervantes, Don Quixote, que apesar de nunca aparecer na história, personificava o ideal de Beleza e de Virtude. Don Quixote tinha uma dama em seu coração como citado abaixo.

“Crê-se que, num lugar próximo do seu, havia uma lavradora jovem muito bem parecida, por quem ele, um tempo, andou apaixonado, ainda que, segundo se sabe, ela jamais o soubesse nem ele lhe tenha dado conta disso.”

“Chamava-se Aldonza Lorenzo, e a esta lhe pareceu ele por bem dar-lhe o epíteto de senhora dos seus pensamentos; e, procurando nome que não desdissesse muito do seu e que se aproximasse e encaminhasse ao de uma princesa e grande senhora, veio a chamar-lhe Dulcineia de Toboso porque era natural de Toboso: nome, que lhe parecia, musical, peregrino e significativo, como todos os demais que a ele e às suas coisas havia posto.”

Don Quijote de la Mancha, Primeira parte. Capítulo I.

3.Aquele cara: um sujeito amorfo que talvez seja mais bonito rico ou forte, nada mais.


*Capítulo VIII — Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação.

“Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento, que há naquele campo. Assim que D. Quixote os viu, disse para o escudeiro:
— A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar; porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.
— Quais gigantes? — disse Sancho Pança.
— Aqueles que ali vês — respondeu o amo — de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas.
— Olhe bem Vossa Mercê — disse o escudeiro — que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e os que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.
— Bem se vê — respondeu D. Quixote — que não andas corrente nisto das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha.
Dizendo isto, meteu esporas ao cavalo Rocinante, sem atender aos gritos do escudeiro, que lhe repetia serem sem dúvida alguma moinhos de vento, e não gigantes, os que ia acometer. Mas tão cego ia ele em que eram gigantes, que nem ouvia as vozes de Sancho nem reconhecia, com o estar já muito perto, o que era; antes ia dizendo a brado:
— Não fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos investe.
Levantou-se neste comenos um pouco de vento, e começaram as velas a mover-se; vendo isto D. Quixote, disse:
— Ainda que movais mais braços do que os do gigante Briareu, heis-de mo pagar.
E dizendo isto, encomendando-se de todo o coração à sua senhora Dulcinéia, pedindo-lhe que, em tamanho transe o socorresse, bem coberto da sua rodela, com a lança em riste, arremeteu a todo o galope do Rocinante, e se aviou contra o primeiro moinho que estava diante, e dando-lhe uma lançada na vela, o vento a volveu com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando desastradamente cavalo e cavaleiro, que foi rodando miseravelmente pelo campo fora.
Acudiu Sancho Pança a socorrê-lo, a todo o correr do seu asno; e quando chegou ao amo, reconheceu que não se podia menear, tal fora o trambolhão que dera com o cavalo.
— Valha-me Deus! — exclamou Sancho. — Não lhe disse eu a Vossa Mercê que reparasse no que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e que só o podia desconhecer quem dentro na cabeça tivesse outros?
— Cala a boca, amigo Sancho — respondeu D. Quixote —; as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças; o que eu mais creio, e deve ser verdade, é que aquele sábio Frestão, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos, para me falsear a glória de os vencer, tamanha é a inimizade que me tem; mas ao cabo das contas, pouco lhe hão-de valer as suas más artes contra a bondade da minha espada.

Don Quijote de la Mancha, Primeira Parte. Capítulo VIII.