Com 14 anos deixei o meu pediatra. A separação foi oficializada por uma consulta com um clínico geral que palpou a minha barriga, abriu a minha boca, auscultou o meu coração e os meus pulmões, e me disse, com firmeza, que eu estava saudável. O conhecimento implícito do funcionamento do organismo humano resumido numa conclusão certeira elevou-o, em meus pensamentos, ao status de um deus.
Já na faculdade de Medicina, estudando bioquímica, fisiologia e as demais disciplinas sequenciais, esperava pacientemente o momento em que acordaria e perceberia que o corpo humano estaria sob o meu controle. Eu acreditava que o domínio técnico do ofício, representado futuramente pelo meu carimbo, daria a mesma segurança que vi no meu clínico geral.
Alguns anos se passaram e no meu primeiro ano de residência de Clínica Médica na Universidade Federal do Rio de Janeiro, conversando com um grande professor, ouvi de sua boca: “eu não sei o que o paciente tem”. Como que numa parada cardíaca cerebral, estas palavras tiraram de mim, automaticamente, a possibilidade futura de ter a Medicina sob controle. Além do meu clínico antigo me parecer um farsante e me dar uma baita insegurança sobre a minha saúde da adolescência, fiquei pensando, assustado, em como conseguir ser médico de verdade, já que existiam situações em que catedráticos de cabelos brancos diziam: “eu não sei”. Foram semanas cinzentas as que se seguiram. Pela primeira vez, conscientemente, percebi que o médico poderia não ter o controle absoluto da situação.
As férias chegaram – numa época em que eu tinha férias longas – e, passeando pela Itália, parei para tomar um gelato de frente a uma das fontes romanas mais famosas do mundo, La Fontana di Trevi, que tem como tema a domesticação das águas. Em seu centro encontra-se Oceanus sobre uma carruagem puxada por dois cavalos. Um calmo e o outro indócil. Ele sabe que contra um mar revolto há pouco o que se fazer e que a tranquilidade de uma calmaria não representa o seu poder sobre o mar.
Enfim entendi que a Medicina é como o mar de Oceanus. Ora calma, ora incontrolável, mas sempre maior do que nós. E a mim cabe o respeito e a ousadia de seguir em tal ofício, lidando com a dúvida e me curvando diante da maior obra de Deus: a vida humana.