O Triplo Mal

É muito evidente que um verdadeiro professor precisa, além de ter o domínio técnico específico do que pretende ensinar, portar algumas características indispensáveis: eloquência, regência de turma, vocação, clareza, articulação lógica, autoridade, capacidade de avaliar o aluno e de se avaliar.

Com o aumento acelerado de escolas médicas no Brasil nas últimas décadas, em paralelo à satisfação de uma multidão de pessoas que não teria acesso ao diploma nas circunstâncias anteriores, surge um problema cada vez mais evidente que, ao meu ver, é diagnosticado de forma superficial pela comunidade acadêmica, que apresenta soluções algo deslocadas da realidade.

“O aluno é o personagem principal e o maior responsável pelo processo de aprendizado” passa a ser o bordão de ouro –  e a solução – dos novos educadores. O professor perde a sua cadeira e passa a ocupar o espaço de facilitador. Metodologias ativas de ensino são supervalorizadas e aquele jovem médico escolhido para o cargo apenas por ser especialista na área deixa de receber todo o estímulo necessário para desenvolver as tais características indispensáveis para que o conhecimento seja transmitido.

Mas não é exatamente deste assunto que venho tratar aqui, ainda que a descrição acima seja real e, talvez, gere consequências futuras imensuráveis e fora do alcance de visão da nova geração. 

Segundo Gilbert de Tournai, autor do livro Sobre o Modo de Aprender, além das indispensáveis, existem as características inegociáveis. A principal delas para o nosso momento atual – e é disto que quero falar – é a habilidade de ensinar a verdade, que vem da busca pessoal, contente, incessante, contagiante, incurável e progressiva, por conhecer o que é certo. 

Um professor tem a obrigação moral de ensinar a verdade e viver esta coerência durante a sua ação docente e médica diante de seus alunos. Uma verdade ampla e encarnada em sua própria história. Esta é a coluna principal da relação entre um mestre e um discípulo. Um professor deve falar em primeira pessoa. Tem voz. É ativo. Progride. Sobe o sarrafo e leva consigo – para cima! – quem, livremente, o escolhe como mestre.

Francisco Faus, no livro O Homem Bom, diz: “Calar-se, deixando o barco correr… e afundar-se é, sem dúvida, mais cômodo. Alhear-se ou até mostrar-se conivente com os erros alheios atrai benevolência e simpatia. Mas é uma forma covarde de omissão e uma triste colaboração com o mal”.

Um professor que se cala, adoece. E em meio à pandemia de hedonismo e soberba, onde a falsa promessa de cura vem da renúncia ao esforço e busca pelo prazer, o afastamento progressivo da verdade começa a devastar o ambiente onde o fenômeno se instala.

O sistema se acomoda, a nova cultura se instala e, não raro, surge aquele facilitador sorridente, amigo dos alunos, casado, mas que não hesita em fazer piadinhas de duplo sentido com suas alunas, permanecendo ali, pronto, caso algo mais íntimo passe a ser viável. Aquele sujeito que estica os olhos para os decotes e gosta de dar a entender que ainda está no jogo. Que conta as suas peripécias sexuais para os mais jovens com um ar de experiência, como se a esposa fosse um fardo a ser contornado diariamente. Quando em sala, na presença de alunas que despertam algum interesse, viram pavões e não têm o menor pudor em fazer piadas sobre o próprio casamento. Ou ainda aquela facilitadora balzaca que orgulha-se, externamente, de ainda ser boazuda ao mesmo tempo que mãe, mulher, professora e médica, como se fosse possível ser tudo isso sem dano a alguma das partes. Sente-se bem ao ser reverenciada pelas alunas como um grande exemplo – ainda que fake – a ser copiado. Seu casamento está desordenado, os filhos são depositados em colégios de horário integral e levados para casa no começo da noite para serem entregues às babás que os fazem dormir. Suas crianças mostram diversos desvios de comportamento (agressividade, falta de limites, obesidade,…) mas, após as consultas com os psicólogos, sentam-se de frente às telas com acesso a conteúdos que os pais desconhecem. Por último, dentre as inúmeras variações possíveis, aparece o doutor em facilitação. Aquele que coordena o ensino de longe dos ambientes de saúde. Já não atende pessoas há décadas mas define como se ensina a atende-las. Estuda como ensinar Medicina mas já não estuda Medicina. Facilita as discussões e aponta os caminhos, em sala de aula confortável, através de problematizações jamais vividas por ele. Adequa retoricamente as decisões institucionais à linguagem aceita pelos pares. Para ele todos têm voz. Todos podem falar contanto que falem a mesma coisa. Facilita docilmente o caminho para o ensino ativo mas dificulta a vida de quem pensa diferente.

São facilitadores que vivem uma vida exterior perfeita para Instagram e congressos, mas que não passa de uma farsa íntima fantasmagórica. Fantasmas que não são nem professores, nem maridos, nem esposas, nem pais, nem mães, nem exemplos,… são facilitadores. Aliás, não há nome melhor para quem busca uma vida fácil.

Vamos ao triplo mal docente!

Primeiro mal: O mal a si mesmo. Quando perde-se a tal busca incessante por conhecer o que é certo, ofusca-se a vida interior e ganha-se a vida pendular. Uma vida que oscila entre o prazer obsessivo e o desgosto em ter que fazer o que não é desejado. Depois da academia passa a ser um transtorno estar por uns minutos ao lado dos filhos. Após o plantão é necessário se esparramar no sofá para o merecido descanso ainda que a esposa esteja absolutamente solitária. Tristeza, depressão, divórcio, conflitos, dor.

Segundo mal: O mal ao aluno. O aluno*, digo, o estudante percebe, ainda que em linguagem não verbal, a incoerência entre o que é dito e o que é feito. O estudante perde a referência moral, tão necessária, e fica perdido. Agora ele realmente começa a passar fome. Falta de sentido. Remédios. Dúvidas quanto à vocação.

Terceiro mal: O mal à Medicina. A nossa profissão que é uma profissão de serviço ao próximo, altamente técnica mas ancorada em valores humanos, começa a virar apenas um meio para uma vida desejada. E uma vida desejada, nestes termos, jamais será alcançada pois não é real. Médicos angustiados passam a falar mal da Medicina. Perde-se a alegria em poder servir.

Contra o mal só existe um remédio: o Bem. E um homem bom é, pois, aquele que exerce sobre nós uma influência boa, uma influência que tem como efeito elevar-nos, nutrir-nos, ajudar-nos a alcançar uma maior altura moral. O professor que ensina a ser médico e a ser gente, através da Medicina.

Por fim uma notícias boa. Procurem os bons professores. Eles ainda existem.

*Não devo mais usar a palavra aluno. Ouvi em um encontro de escolas médicas que o termo é pejorativo visto que significa alimentar, sustentar, nutrir, fazer crescer, ou seja, aponta para alguém que precisa de cuidados de outro mais experiente mas, afinal, isso não existe mais, não é mesmo? Estamos todos em iguais condições! Não existe melhor ou pior, nem certo ou errado. O correto deveria ser o termo estudante, segundo um jovem rapaz, magrinho, que na época cursava o segundo período de Medicina.