Anamnese significa trazer à memória e é através dela que surge a oportunidade de compreendermos a narrativa do paciente e então elaborarmos, em conjunto com o exame físico, as hipóteses diagnósticas.
Durante a entrevista clínica é que iremos trazer à memória do paciente todos os elementos necessários para a reconstituição dos fatos em torno do(s) sintoma (s) e/ou sinal(is).
E tudo tem que ser passado para o papel. Sentados em uma cadeira e com uma caneta na mão, utilizando a linguagem escrita, escrevemos a nossa anamnese.
Linguagem esta que só tem um único objetivo: colocar em palavras a descrição correta da realidade concreta trazida à memória por aquele único indivíduo – o paciente – que a experimentou sem intermediários.
Expressarmos pela linguagem nativa com exatidão todos os fatos narrados ali, na nossa frente, é a premissa maior para que o trabalho seja útil. Uma anamnese que contenha um texto que não traga em palavras todas as informações fidedignas à realidade não tem utilidade alguma.
E nós dominamos a língua portuguesa de forma que consigamos expressar todas as impressões que nossos pacientes nos relatam durante a entrevista clínica?
A resposta é não.
Para piorar, eis a onipresente, terrível, cruel e emburrecedora linguagem técnica. Através dela nos escondemos, nos elevamos, nos defendemos, nos engrandecemos, interpretamos e, por fim, nos afastamos definitivamente da realidade.
Sem o domínio exato da língua, compreendendo apenas o significado gramatical das palavras e não o que elas representam na realidade, criamos histórias abstratas que nos levam a diagnósticos errados validados pela linguagem técnica.
Sem compreender o que realmente o paciente está dizendo e sem a habilidade necessária para reproduzirmos isso no papel, interpretamos o que nos parece ser o certo e definimos essa entidade amorfa com palavras que somente nós temos acesso.
Será que aquela alteração de marcha era ataxia? Que aquela alteração na visão era uma diplopia? Que aquele cansaço era uma fraqueza ou não seria uma astenia? Aquela paciente com incômodo no peito estava com dor? Aquela moça chorosa realmente estava ansiosa? Aquele homem falando bobagens estava mesmo confuso?
Estamos matando a Medicina.
Não vejo outro caminho senão voltarmos ao ensino básico. Estudarmos a língua portuguesa, como usar as palavras e como descrever a realidade.
A sugestão que tenho dado aos meus alunos (e que tenho seguido) é a seguinte: Colham a história do paciente e passem para um rascunho sem se preocuparem com a linguagem técnica. Escrevam os fatos da maneira que forem mais fiéis com a realidade. Respeitem a sucessão temporal dos fatos, sem atribuirem causa e consequência e sem interpretarem o discurso do paciente. Façam um texto com princípio, meio e fim como se este fosse ser corrigido por um professor de português e não por um médico. Releiam, releiam e releiam. Pensem se as palavras ali expostas constroem nas suas mentes tudo o que vocês ouviram. E só agora tentem utilizar cirurgicamente a linguagem técnica para descreverem os sinais e sintomas e, então, reescrevam a sua anamnese.
Nossas palavras têm descrito uma imensidade de fatos menos aqueles presentes na realidade imposta diante de nós por pacientes de carne e osso. Como disse Voltaire em meados de 1700, estamos distraindo o paciente enquanto a Natureza cuida da doença.
Precisamos dominar a língua pátria com perfeição.